Exhibition, 2016
AO GOSTO DE ANTÓNIO FERRO
Cerâmica e Artes Decorativas
PT/
A exposição Ao gosto de António Ferro: cerâmica e artes decorativas apresenta um conjunto de objectos que podem ser vistos como a expressão tangível, chegada até nós, da política do gosto fomentada por António Ferro no quadro da intervenção do Secretariado Nacional da Informação (SNI, antes SPN), durante os anos 40 do século XX. Esta exposição testemunha, igualmente, a forma como tal política se difundiu já na década de 50, depois de Ferro ter abandonado a direcção do SNI, através da criação e produção de peças decorativas de sugestão regionalista e da sua propagação em espaços públicos e privados do quotidiano burguês da época.
Confirma-se este propósito decorativo no conjunto de pratos de Hansi Staël (1913-1961) com motivos pintados a aguarela e guache sobre vidrado branco, evocando a faina piscatória da Nazaré na série Motivos Portugueses e os motivos minhotos na série Barcelos, agora exibidos na Objectismo. Nesta exposição destaca-se também o conjunto de quatro desenhos de Paulo Ferreira (1911-1999), esboços para as pinturas murais Lisboa, Terra Saloia, Ribatejo e Nazaré, que figuram na Sala da Estremadura do Museu de Arte Popular, inaugurado pelo SNI em 1948. São desenhos que revelam um estilo folclorizante, em linha com aimagética regionalista promovida por António Ferro. Podemos ainda observar, nesta mostra, uma mesa e dois bancos de madeira de castanho, revestidos com pequenos azulejos de motivos populares da fábrica da Viúva Lamego, perfeitos exemplares do “estilo nacional” que a política do SNI quis desenvolver, e cuja marca dominante, como enunciou Rui Afonso dos Santos, foi a estilização folclórica e regionalista.
Nesta exposição foram ainda apresentados vários números da revista Panorama, o extraordinário álbum Vida e Arte do Povo Português e outras edições do SNI que oferecem um retrato alargado do que foi a estética desenvolvida pela equipa de artistas decoradores que trabalharam com Ferro, revelando-nos, em particular, o olhar enlevado e encantatório que os mesmos promoveram em torno das coisas populares e do seu cariz decorativo.
Folha de Sala:
Ao gosto de António Ferro: artes decorativas e cerâmica
Vera Marques Alves
Na exposição que agora abre na Galeria Objectismo, um conjunto de peças sobressai: uma mesa e dois bancos de madeira revestidos com pequenos azulejos de motivos populares da fábrica da Viúva Lamego; um conjunto de desenhos de Paulo Ferreira — esboços dos painéis que viriam a figurar nas paredes do Museu de Arte Popular, inaugurado em 1948 pelo Secretariado Nacional da Informação (SNI, antes SPN) — e diversas peças cerâmicas que, embora produzidas depois de 1950, remetem-nos ainda para um imaginário regionalista fomentado por António Ferro, director daquele secretariado entre 1933 e 1949. Nas próximas linhas esboçamos umas breves notas sobre o significado histórico do conjunto de peças cerâmicas e de artes decorativas patentes na presente exposição. Como veremos, apesar da sua aparente inocência, os objectos em exibição foram criados na sequência de um programa preciso engendrado por Ferro ainda nos anos 30 e posto em prática de forma sistemática durante a década de 40.
Em 1948, António Ferro congratulava‑se com o êxito da política do gosto que desenvolvera no quadro do Secretariado da Propaganda Nacional, afirmando que a obra do SPN «chega até a influenciar os que a negam e que, sem perceberem como, já preferem agora a jarra de Estremoz ao triste solitário, o azulejo de motivos populares – que apareceu pela primeira vez no Pavilhão de Paris – ao azulejo banalmente floreado a fingir antigo, a Pousada diferente ao hotel qualquer (…)».
A descoberta da arte popular e o investimento nacionalista nas artes decorativas em Portugal não foram uma invenção de António Ferro. Mas terá sido devido à sua acção enquanto director do SPN/SNI que tal inclinação foi transformada numa política consistente de desenvolvimento de um estilo nacional, através do qual se pretendia conjugar o moderno, a arte popular, e a exploração dos motivos inspirados nos artefactos rústicos. Como enunciou Rui Afonso Santos, o SPN foi de facto o grande arauto de um «estilo português ecleticamente moderno onde a estilização folclórica e regionalista era a nota primordial».
A motivação subjacente a tal política era de teor estético e político: por um lado, o director do SPN pretendia remodelar a própria fisionomia da nação, de modo a dotá-la da faceta moderna e «civilizada» patente noutros países da Europa. Ferro, pretendia, acima de tudo, tratar da aparência do país. E, quando se refere a países civilizados, não é o seu desenvolvimento económico e social que tem em mente, mas acima de tudo a dimensão artística e de bom gosto que distinguiria a configuração visual dessas mesmas nações. Por outro lado, Ferro estava consciente de que a afirmação das identidades nacionais, passava também pela construção de uma imagem diferenciada do país face ao exterior que ajudasse a criar a ideia de uma cultura única e distinta de todas as outras. Nessa medida, promoveu o desenho de uma fisionomia moderna que fizesse uso de tudo aquilo que pudesse servir como marca de uma identidade portuguesa exclusiva. O Secretariado apropria-se, assim, dos elementos do folclore e em particular da chamada «arte popular» e estimula o seu uso decorativo em espaços públicos e privados. Desejava-se, no fundo, que os objectos rústicos invadissem a modernidade portuguesa, conferindo-lhe uma imagem única. Ao mesmo tempo, fomentava-se a constituição de tais artefactos em fontes primeiras de uma arte decorativa de cunho nacional.
O exemplo mais claro deste projecto é a edificação das Pousadas de Portugal, pequenos estabelecimentos hoteleiros localizados em zonas rurais, onde o conforto e o “bom gosto moderno” eram combinados com a decoração inspirada em motivos populares: assim, a Pousada de Santa Luzia, em Elvas, primeiro destes estabelecimentos a ser inaugurado, é arranjada com mantas de Reguengos, bonecos de barro de Estremoz e mobílias alentejanas. A imagética folclorista marca também a decoração das outras pousadas abertas de seguida: a Pousada de Santo António, instalada no Vale do Vouga, a Pousada de S. Brás de Alportel, a Pousada de São Lourenço, na Serra da Estrela, bem como a Pousada de São Gonçalo do Marão, onde sobressaem as louças e têxteis regionais, os azulejos com figura avulsa, e o mobiliário de linhas rústicas.
Entretanto, o SPN organiza vários certames dedicados à arte rústica portuguesa, através das quais procura sensibilizar as classes médias para a faceta decorativa dos artefactos populares. São estes certames – como o que teve lugar no Centro Regional da Exposição do Mundo Português — que darão origem ao Museu de arte Popular, criado em 1948. Tal como nas pousadas, a configuração dos espaços e as formas de arranjo decorativo das peças de arte popular no museu e nas exposições, foi da responsabilidade da equipa de pintores-decoradores do Secretariado. Para o Museu de Arte Popular, Tom, Manuel Lapa, Estrela Faria, Eduardo Anahory, Carlos Botelho e Paulo Ferreira – alguns dos artistas que colaboravam regularmente com o secretariado — criaram ainda diversos murais representativos das várias províncias. São precisamente os esboços das pinturas murais da autoria de Paulo Ferreira, dedicados a Lisboa, à Estremadura e Ribatejo e à Nazaré, que podemos observar nesta exposição. Tais esboços são também o fragmento de um longo período de colaboração entre Paulo Ferreira e António Ferro no contexto da política folclorista do SPN/SNI.
São de Paulo Ferreira as apelativas ilustrações do livro Quelques images de l’art populaire portugais, publicado por ocasião da presença portuguesa na Exposição Internacional de Paris, também dirigida por Ferro. No pavilhão projectado por Keil do Amaral houve lugar para uma sala dedicada à arte popular portuguesa — premiada, aliás, pelo júri da Exposição com um Grand-Prix – que serviu de pretexto para o opúsculo em causa. No ano seguinte, Paulo participa na caravana que percorre o país, no âmbito do célebre concurso da Aldeia mais portuguesa de Portugal, e, por ocasião das festas centenárias, é o responsável gráfico pelo álbum Vida e Arte do Povo Português, então editado. É igualmente da autoria de Paulo Ferreira a decoração da Estalagem Lidador, em Óbidos, empreendimento da responsabilidade do SPN que anteciparia a edificação das Pousadas, onde se faz uso dos barros e das loiças regionais, das chitas e do ferro forjado. (Um ano depois, na revista Panorama, faz-se o elogio do arranjo decorativo do restaurante Tito, em Lisboa, da autoria de Maria e Francisco keil, onde, tal como na antiga pensão de Óbidos, se faz uso das madeiras e dos candeeiros de ferro forjado, destacando-se também as mesas com azulejos e as portas com motivos folclóricos pintados).
As várias peças que compõem a presente exposição da Objectismo remetem-nos, justamente, para este projecto de criação de um estilo nacional fomentado pelo organismo de propaganda do Estado Novo: a mesa e os bancos de madeira revestidos com pequenos azulejos de motivos populares da fábrica da Viúva Lamego, assim como as várias peças cerâmicas com motivos populares, são uma expressão tangível, chegada até nós, da política do gosto desenvolvida nos anos 30 e 40; um gosto que continua a difundir-se na década seguinte através da produção e consumo de várias peças decorativas de sugestão regionalista, prolongando assim, para lá do fim da segunda guerra mundial, o programa de nacionalização do quotidiano das classes médias portuguesas concebido por António Ferro.
Vera Marques Alves , Novembro 2016